15 março 2011

Eu beijo, tu beijas, nós beijamos... Nós nos beijamos


Lembro-me de beijos bem dados e de outros mal dados.
Lembro-me do primeiro beijo, dos primeiros beijos... Dos primeiros, primeiros beijos.
Foram todos tão bons. Os primeiros são muito bons. Perpétuos na boca, quando se lembra deles.
Os beijos posteriores, não é que não sejam bons, mas são parecidos. Bons, mas parecidos. 
Os primeiros salivam novos. Beijos estreados.

Tenho um amigo que diz que saberia se a namorada beijou outra pessoa, porque sente uma diferença, mínima, que seja. Sente uma confusão no "beijar".
Diz que fica um beijo sem jeito, que vai se enfiando, tateando, tentando encontrar. Diz que beijo de namorados é um beijo cúmplice. É como se as bocas se olhassem e se entendessem de cara. Se entregam ali, na hora. Como uma coreografia molhada sem ensaios. Diz que o beijo é a transa das línguas puras, nuas. Diz que elas se encaixam, se esfregam, se deitam, diz que elas se lambem.

Poucos são os que nunca vão beijar. E mesmo quem nunca vai beijar, em algum momento da vida se pegou lambendo o espelho, as costas das mãos, uma boneca ou a boca do Senhor Batata. Eu já beijei o Senhor Batata. Uma cabeça com tantas bocas disponíveis ali, à vontade, para eu tocar - beijar - lamber - trocar - e deixar aquilo babado. Procurava tirar os bigodes, era grotesco demais para mim. É bizarro beijar o Senhor Batata com bigodes.

São tantos os dizeres, tantas teorias sobre beijo.
Cada um tem a sua. Cada um gosta de um beijo específico, cada um acha que beija melhor do que o outro, e, se vão à prova, pode dar até casamento. Passariam a vida dizendo "que eu beijo melhor que você".

Beijo é universal.
Se você beija uma indiana, vai sentir o mesmo beijo comum. Beije uma chinesa, a mesma coisa. Beije também um espanhol.  O beijo é o mesmo. O beijo é igual desde que seja compatível. Você pode beijar mulher, homem e até uma samambaia. O beijo é igual e sem preconceitos.
É verdade que tem uns mais secos que os outros, mas você mesmo pode lubrificar a boca da outra pessoa. Isso chama-se beijo solidário. É simples e nem precisa juntar artistas para cantar e dançar um “We are the ‘kiss’”.

O beijo é fantástico. Magia natural. Entrega sem limites.
Alguns estremecem, outros perdem o fôlego e chegam até a desmaiar. Alguns apenas beijam, como se fosse mais-um-beijo-qualquer. Outros se doam, como se aquele beijo fosse o último, único ou mesmo como se ele não estivesse existindo.

Um ou outro beijo passa a deixar de existir para nós. São tantos e esperamos tantos mais, que esquecer-se daquela bitoca dada no trailler do filme ou no meio daquela cena derradeira que desvendava que o mordomo era o culpado, não era pecado nenhum, já que sempre antes do trailler do filme ou no meio da cena derradeira, todo mundo se beija, da mesma forma que o mordomo é sempre o culpado.
Mas até o mordomo beija. Que sejam as costas das mãos ou o Senhor Batata, mas beija.

Aprendemos isso com os peixes que se deliciam nos beijos perpétuos, na grande maioria solos. Beijos só deles, peculiares, discretos, íntimos e, como os nossos, sempre molhados.
Porém, todos os animais beijam. Alguns beijam e mordem, mas isso é também um talento humano.
E graças aos animais, muitos humanos que os viram mordendo e beijando desde pequenos, seguiram sua vida beijando e mordendo. Um instinto, um ensinamento animal.

É justamente para não deixar igual o beijo, que muita gente morde, depois lambe. Mas com o tempo, até isso fica igual. Bom, mas igual.
E o que fazer? Sugiro mais uma dose de Kuss, Basium, beso, kiss, bacio, uma overdose de beijo.
Então, me entrego, faço pesquisa e descubro sozinho (lê-se “com alguém junto!”).
O fundamental é beijar. É espetacular.

"(como beijar o beijo ?)" é uma pergunta de Drummond e eu não sei responder. Nem ele sabia. Ninguém sabe. Ou todos sabem.
Acredito que beijo não se beija, se bebe.


Um beijo,
D.





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08 março 2011

==> Bebida I

Achei importante achar uma bebida importante e homenageá-la.

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Preciosidade pictórica! Foi o que pensei agora, ao olhá-lo no copo.
Não pelo Rubí, cor rara, que nomeia pedras caras. Ou pela barganha de dizer um Borgonha, que pouco sabe-se em cor, mas em sabor deleita-se.
Em outros cantos diriam um Púrpura acrescentado de pouco Vermelho Cádmio - escuro, talvez - que seja. Noutros cantos diriam Carmim, mas algo assim é tão aquém de seu poder e seu gosto.


Aliás, é isso. Deixemos de lado sua cor e falemos de seu gosto.

Tem sabor de poder. De poder pensar. De poder pensar em qualquer coisa, eu digo. Pensar que podemos acordar numa fria manhã de junho, metamorfoseados em insetos deitados na cama, aguardando a repulsa humana, ou pensar em lembranças de prisões nunca antes sofridas, num AI-5 nunca antes existido. Eu disse que se pode pensar em qualquer coisa. Pensar, até mesmo, seja por dois segundos, que se é integrante de uma banda punk que tocou outrora em noturnas alegres, de tempos em que a guitarra e o couro se fundiam em belas vistas tristes. Ou pensar em não mais pensar e, com ele, deixar-se ir.


Falo de poder ser metáforas, poder de verdade. Poder ser picado por aquele seu veneno roubado, suado, drenado, que paralisa o rumo de qualquer história. Um veneno vital, revigorante e astuto. Poder que dá fogo a qualquer mortal eternamente acorrentado, de fígado ferido, privado de sonhos e bicadas de prazer. Salve o prazer, alegre, valente.

Falando nisso, me veio Dionísio. Este sim é certo para representar-te. Oh, deus do vigor.
Aquele que tratou de tuas parreiras e deixou teu legado a centauros, ninfas e sátiros - seres distantes, pisantes das uvas frescas.
Tens ótimos representantes que sabem valorizar seu mosto. És bebida para poucos.


Quem te trouxe a nós? Talvez Noé ou os Faraós que deram aos gregos um cavalo alado, sem dor, com sabor doce e, que, por sua vez, deixaram à Roma o dispor para o teu saber, o teu criar.

A mim chegou do sul, mas já veio de lugares distantes essa bebida navegante, pirata, que não troco por prata ou ouro, por nada.
Fermenta, depois se inventa e às vezes surge branco, das asas de um anjo que acalenta e fala ao meu ouvido com paz. Me deixa em paz.


O que me invade não machuca, ao contrário, faz bem ao coração.


És tão meu, meu presente divino. Sou tão teu por vezes, e serei sempre que quiseres. Porque a ti entreguei-me de corpo e alma que brindam forte e saúdam suas uvas.







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25 fevereiro 2011

==>Debutando: 15 anos da Morte de Caio Fernando Abreu

Eu não sabia que esta semana completaria 15 anos de morte de Caio Fernando Abreu, especificamente hoje. 
Fui "apresentado" a ele por uma das pessoas mais especiais para mim. 
Até então, eu só ouvia dizer sobre o grande Caio Fernando Abreu, escritor.
Como tudo no mundo transforma, me senti assim, mutável em cada texto que li.


Coincidências da alma, minha última postagem, a desta semana, dediquei ao Caio. http://www.atormentossingulares.com/2011/02/coracoes-curados.html



Abaixo, um dos textos mais esplêndidos que ele escreveu.



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Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:


Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se p6os. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome. Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.

Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração é teu.

19 fevereiro 2011

==> Corações Curados

Que seja livre o coração sobrevivente da devastação de um caminho longo e sem ventos, deslizando por vias obstruídas, atropelando lixos passados e passantes. É este o coração errante.


Um coração qualquer. Um coração sem pé. Não tem cabeça também. O coração descoroado, sem cajado. Coração enganado.
Que este seja libertado para ser único.  Porque quando se liberta um, outro sorri sem dor.

E dois saem em valsas, festejam leves. São poeiras que vagam e pairam em algum lugar, esperando o próximo vento passar. Querem voltar a voar para longe ou perto dali, tanto faz. O importante é partir.
Vão em frente, não sentem frio, nem calor. Estão impacientes.  Ficam cuidadosos, ponderados. Agora são dois corações libertados, de sorte, corações fortes.  

Seguem de olhos fechados, aproveitam a levada. São corações engajados, mas ainda desencontrados. Estão doentes.
Buscam a mesma toada em caminhos opostos, mas os ventos são caprichosos. Os fazem rodopiar, girar e girar, para lá e para cá. Se deixam levar. Parecem contentes.

Sonham de olhos fechados, mas estão perto. Corações dispersos. Se não abrirem os olhos, fica incerto.  


Esbarram-se, sentem-se. Encontram-se finalmente. Abrem os olhos e miram-se veemente.
São corações encontrados, teimosos como o meu, que um dia pensou em dizer adeus, mas se deixou levar pelo vento. Coração atento.

Somos muitos assim no mundo, sugados e renovados, de corações curados.


(para Caio Fernando Abreu)



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