25 fevereiro 2011

==>Debutando: 15 anos da Morte de Caio Fernando Abreu

Eu não sabia que esta semana completaria 15 anos de morte de Caio Fernando Abreu, especificamente hoje. 
Fui "apresentado" a ele por uma das pessoas mais especiais para mim. 
Até então, eu só ouvia dizer sobre o grande Caio Fernando Abreu, escritor.
Como tudo no mundo transforma, me senti assim, mutável em cada texto que li.


Coincidências da alma, minha última postagem, a desta semana, dediquei ao Caio. http://www.atormentossingulares.com/2011/02/coracoes-curados.html



Abaixo, um dos textos mais esplêndidos que ele escreveu.



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Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:


Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se p6os. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome. Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.

Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração é teu.

19 fevereiro 2011

==> Corações Curados

Que seja livre o coração sobrevivente da devastação de um caminho longo e sem ventos, deslizando por vias obstruídas, atropelando lixos passados e passantes. É este o coração errante.


Um coração qualquer. Um coração sem pé. Não tem cabeça também. O coração descoroado, sem cajado. Coração enganado.
Que este seja libertado para ser único.  Porque quando se liberta um, outro sorri sem dor.

E dois saem em valsas, festejam leves. São poeiras que vagam e pairam em algum lugar, esperando o próximo vento passar. Querem voltar a voar para longe ou perto dali, tanto faz. O importante é partir.
Vão em frente, não sentem frio, nem calor. Estão impacientes.  Ficam cuidadosos, ponderados. Agora são dois corações libertados, de sorte, corações fortes.  

Seguem de olhos fechados, aproveitam a levada. São corações engajados, mas ainda desencontrados. Estão doentes.
Buscam a mesma toada em caminhos opostos, mas os ventos são caprichosos. Os fazem rodopiar, girar e girar, para lá e para cá. Se deixam levar. Parecem contentes.

Sonham de olhos fechados, mas estão perto. Corações dispersos. Se não abrirem os olhos, fica incerto.  


Esbarram-se, sentem-se. Encontram-se finalmente. Abrem os olhos e miram-se veemente.
São corações encontrados, teimosos como o meu, que um dia pensou em dizer adeus, mas se deixou levar pelo vento. Coração atento.

Somos muitos assim no mundo, sugados e renovados, de corações curados.


(para Caio Fernando Abreu)



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